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3.14.2009


Notas de tempos inconciliáveis

A partir da idéia das colagens de imagens e objetos, desevolveu-se o texto das Notas de Tempos inconciliáveis.

Apresentação:

O trabalho se estrutura pelo sistema de blocos, cada bloco contém sete notas que correspondem às sete notas musicais de uma escala tonal[1]. Apresento aqui o primeiro bloco em que cada nota tenta abarcar um conceito apreendido durante as aulas do mestrado na linha de Processos Artísticos Contemporâneos.
As Sete Notas de Tempos Inconciliáveis trabalham num registro fechado, assim como na escala da música tonal suas combinações são múltiplas, podendo ser repetidas, invertidas, compostas ou formadas de forma ‘combinatória ou aleatória’.
As formas combinatórias pressupõem um entendimento da harmonia funcional da música, da seqüência dos acordes possíveis e previsíveis dentro de uma mesma estrutura harmônica, já as formas aleatórias, permitem que a composição saia de seu registro tonal e entre em outro registro de tom não previsto, pois existe a quebra da estrutura e da harmonia.
A sistematização do fazer artístico na forma fragmentada de notas criou uma escrita ‘aleatória e combinatória’ que se tornou o diálogo entre a forma plástica e a forma textual. As Notas de Tempos Inconciliáveis existiram a partir de uma disciplina que foi cumprida diariamente com uma certa rigidez formal: pintar uma tela por dia e escrever no diário fragmentos dessa ação durante noventa dias consecutivos.

Essa forma de sistematização, apesar de rígida, não poderia estar fechada aos acidentes e a aleatoriedade dos dados que fogem ao banal, daí as notas nem sempre se complementarem numa estrutura harmônica fixa como no texto escrito.
O sistema de notas ou blocos permitiu o surgimento de formas coesas de passagens sobre o fazer artístico, pois a forma fragmentada e contida [2] em blocos impôs a pesquisa uma ordem pré-estabelecida em que as combinações das notas se tornaram diferenciadas (combinatórias ou aleatórias), e esta situação contribuiu para uma escrita mais sensível de artista que foi capaz de desdobrar conceitos práticos em conceitos teóricos.
Partindo da filosofia de Michel de Certeau[3], talvez não devêssemos separar o fazer prático do fazer teórico porque ambos são frutos do pensamento, mas prefiro pensar na escrita como um desdobramento do fazer prático, e não, o contrário.


1 Colagem
Trazer o texto como colagem: fragmentos teóricos produzidos a partir da experiência realizada com as colagens plásticas.
O texto como colagem não tem costuras. Subverte a própria questão do texto como algo tecido. A colagem existe na superfície[4], faz as idéias conviverem num mesmo emaranhado de espaço-tempo, mas preserva estrategicamente, distâncias, incongruências e contradições.
A colagem é o que reúne, sobrepõem, subverte, anula e intervém sempre na superfície. O texto como colagem não poderia deixar de ser ele mesmo superficial (como estratégia) e fragmentado; temporalidade quebrada e sincopada.
[1] As ‘sete notas de tempos inconciliáveis’ são arbitrariamente ‘sete’, assim como as notas musicais de dó,ré,mi,fá,sol,lá e si, e esta semelhança existe no âmbito formal.
[2] Ver teoria do fragmento de Schlegel in SELIGMANN,Márcio Silva “Ler o livro do mundo”. pág. 41-42.

[3] A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 1994.

[4] Superfície é um conceito da foulcaultiano que significa que os acontecimentos só acontecem na esfera da superfície, na camada mais externa, pois não existe algo que esteja por trás e tenha a capacidade de revelar o invisível ou o indizível como na metafísica. As coisas só se explicam em sua superfície, pois os signos só se traduzem por meio de outros signos. A superfície é o único lugar onde as coisas se mostram e acontecem.

A colagem se torna temporária, pois as coisas permanecem juntas por que se grudam e depois se descolam, pois a cola seca, o tempo passa e os separa.
A colagem rompe, sobrepõe e apaga, subverte o que está em cima e em baixo, o visível e o oculto. Os campos são cindidos uns pelos outros, a colagem apresenta coisas completamente distintas reunidas umas às outras e essas coisas, apesar de coladas, mantêm suas identidades e autonomias. As coisas convivem entre elas, mas não se amalgamam. A colagem pressupõe a distinção e a separação entre os objetos, experiências e palavras.
A colagem é o que não permanece e cuja duração é perene no tempo, a colagem é temporária, carrega o sentido do tempo que se esvai e que se transforma continuamente.


2
A escrita na forma de fragmentos tenta conter o todo em partes, a sistematização do pensamento em notas ou blocos permite que esmiucemos ao máximo cada parte fragmentada, que segundo a teoria de Schlegel[1] seria a única maneira de tentar abarcar sistematicamente o pensamento que é, no todo, inapreensível ou inabarcável.

“Assim como no âmbito teórico, os românticos chegam à conclusão de que só é possível se atingir uma lucidez pontual, no plano da forma da exposição passa-se o mesmo. “A minha filosofia”, escreveu Friedrich Schlegel em 1797, “é um sistema de fragmentos em uma progressão de projetos (...) Eu sou um sistemático fragmentário.”
“Um fragmento deve ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo ao redor e perfeito em si mesmo como um ouriço.” (SELIGMANN, pág. 41-42)


Assim, a idéia de notas ou blocos, que aparentemente poderia ser entendida como incapacidade de progressão ou continuidade se torna uma tomada consciente do trabalho como única forma de organizar os conceitos teóricos de maneira criteriosa.


3
A pintura requer o tempo da experiência: exercício, contemplação, labor. E este tempo da pintura parece estar sempre em desacordo com o tempo linear e homogêneo do senso comum.
O tempo cotidiano segundo Maurice Blanchot[2] é sempre suspeito e escapa a uma definição clara, pois possui dois lados que nunca se separam: o lado fastidioso, amorfo e sórdido, e o lado inesgotável, irrecusável e sempre inacabado que escapa às formas e às estruturas banais do dia-a-dia.
A pintura sempre problematiza o cotidiano, vive de um descompasso produtivo; não se reconcilia com o tempo da vida e faz os relógios caminharem lentos.
Será que a pintura é necessária ao homem contemporâneo?
A pintura, em seu gesto anacrônico e fora do tempo, talvez seja a única expressão artística possível na contemporaneidade, pois é a única extemporânea, no conceito nietzscheniano, a única possibilidade de ser contemporâneo é estar de fora da rede dos acontecimentos, pois a experiência da distância é a condição única de perceber seu próprio tempo.
“O contemporâneo é intempestivo”[3].

4
A aleatoriedade não pode ser confundida com o acaso. A aleatoriedade existe dentro de um campo fechado de possibilidades, dentro de parâmetros estabelecidos, mesmo que estes parâmetros se tornem imprevisíveis pela seqüência lógica do pensamento.
As minhas colagens nascem do gesto aleatório mais do que do acaso, pois a cada nova tela que faço se fundem fragmentos encontrados aleatoriamente sobre e espaço de trabalho ou do espaço aleatório dos materiais possíveis encontrados numa papelaria.
A beleza fortuita da ‘máquina de costura e um guarda chuva’ é um encontro que pode ser encantado pela ilogicidade do evento, ou seja, pelo acaso, isso não acontece de todo nas minhas colagens, pois mesmo não havendo a equação exata do antes e depois, mas sim o dado espontâneo do gesto de voltar a colar algo o que tinha sido deixado para trás, as minhas colagens pretendem ‘nadar’ entre dois mundos, entre a lógica e a loucura, entre o acaso e a previsão que é o conceito de aleatoriedade.

5
A pintura sempre pressupõe um sistema pré-existente com o qual lidamos, ao qual nos submetemos ou não. A pintura deve partir de um campo autônomo de forças que é o aquário ou a tumba de Robert Rymann[4]. A pintura está ligada à questão formal da pintura moderna, aspectos que dizem respeito aos meios pictóricos e da visualidade.
No texto Arte depois da filosofia, o artista conceitual americano Joseph Kosuth diz que se um artista aceita fazer pintura (ou escultura) ele está aceitando a tradição que o acompanha. Se um artista faz pintura é porque aceita a natureza da arte (pintura) sem questioná-la, por isso, para Kosuth a pintura não poderia mais arte ser uma forma de arte, pois não questionaria sua natureza, e, assim, ficaria pressa somente aos aspectos morfológicos ou formalistas da arte tradicional.
O que se sabe da pintura é exatamente o contrário, ao não problematizar seu suporte, seus meios ou aspectos morfológicos, a pintura seria a arte mais apta a pensar o que a arte pensa, ou seja, a própria função da arte ou a pura idéia como diria Barnett Newmann.
A experiência da pintura vive de uma certa nostalgia, como tão bem observou Yve-Alain Bois em seu texto “A pintura como tarefa do luto”, a pintura seria, de fato, uma tarefa do luto na modernidade. A pintura moderna nasce com o prognóstico de seu fim, como um último lance, uma última partida, a última verdade a ser desvelada. O fim apocalítico e redentor da pintura, que busca o fim em si mesmo e a busca pela sua essência.

6
A pintura como “O retorno do real”[5], que para Lacan o real é tudo aquilo que não pode ser simbolizado ou traduzível e nunca se torna em si assimilável, por isso, precisamos do simulacro ou do anteparo que é a forma possível de tradução do real sendo a arte uma das formas possíveis de anteparo ou simulacro desse real.
Para contrapor essa idéia do real nunca assimilável ou cogniscível temos o existencialismo ou ceticismo de Jean Paul Sartre, que em seu livro “A Náusea” de 1938 relata o dia em que seu personagem Antoine Roquentin, um historiador que pesquisa a vida e obra do Marquês de Rollebon é acometido por um mal inexplicável e passa a observar as coisas do mundo em sua superfície naquilo que elas são somente, a percepção pura e inquestionável do real, pois alguma coisa mudou no mundo de Antoine Roquentin e no modo como ele enxergava o mundo.


7
A superação da contemplação sobre a ação segundo Plotino. O artista não consegue mais contemplar, age e então volta a contemplar.
Contemplação-fazer-volta a contemplação.
Passagem de “Confissão Criadora” de Paul Klee.
“Um certo fogo que surge, que se acende, que avança através das mãos para atingir a tela, que incendeia a tela, que salta em faíscas, fechando o círculo ao retornar para seu lugar de origem: alcançando os olhos e continuamente seu avanço [de volta ao centro do movimento, da vontade, da idéia.]”























Referências bibliográficas:

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita In: A experiência limite 2. São Paulo: Escuta, 2007.

BOIS, Yve-Alain. Pintura: a tarefa do luto, In: Painting as model. MIT Press, 1997.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 1994.

DANZIGER, Leila. “Pintar=queimar”. In: Revista da Gávea n.12. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 1994.

FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (orgs). Escritos de Artistas. São Paulo: Ed. Jorge Zahar, 2006.

FOSTER, Hal. O retorno do real. In:concinnitas 8, Revista do Instituto de Artes da UERJ, julho 2005, pp.163-186.

FOUCALT, Michel. O que é um autor? Conferência:1969. In: Ditos e Escritos Vol.III. 2ª ed. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2006.

­­­­­­­­­­­________________. Um nadador entre duas palavras (Entrevista com C.Bonnefoy). Arts e loisirs, no. 54, ps. 8-9, 1966.

HUYSSEN, Andréas. “Anselm Kiefer- o terror da história, a tentação do mito”. In: Memórias do modernismo, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, pp.180-221.

LAGES, Suzana Kampf. Walter Benjamin: tradução e melancolia, São Paulo: EDUSP, 2002.

LYOTARD, Jean-Francois. O inumano.1ª edição. Lisboa: Editora Estampa, 1990.

KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Tradução: Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado- Imagens do tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998.

SARTRE, Jean Paul. A náusea. 12ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SELIGMANN. Márcio Silva. Ler o livro do mundo. São Paulo: FAPESP, 1999.

SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno, Porto Alegre: L&PM, 1986.

______________. Happenings: uma arte de justaposição radical. In:Contra a interpretação, Porto Alegre: L&PM, 1987.



[1] Friedrich Schlegel, filósofo alemão do séc XVIII.
[2] Blanchot, Maurice in “A fala cotidiana”. Pág:237.

[3] Friedrich Nietzsche citado por Giorgio Agamben em “O que é contemporâneo?”. Texto lição inaugural do curso de Filosofia e Teorética 2006-2007 na Faculdade de Arte e Design do IUAV de Veneza.
[4] Yve-Alain Bois “Rymann tact´s” In: Painting as Model, MIT Press, 1997.
[5] Hal Foster. O retorno do real. FOSTER, Hal. O retorno do real. In:concinnitas 8, Revista do Instituto de Artes da UERJ, julho 2005, pp.163-186.