2.06.2009

Notas sobre temporalidades inconciliáveis

“A junção de duas realidades inconciliáveis em aparência, sobre um plano que aparentemente não combina com elas...”
Max Ernst “What is the mechanism of collage?”

“Sobre cada nova forma reina a sombra da destruição.”
W.G.Sebald “Os anéis de Saturno.”

“Para cada trabalho de arte que se torna algo físico há diversas variações que não se tornam.”
Sol Le Witt.

Introdução:

As Notas sobre Temporalidades Inconciliáveis constroem uma ponte entre as colagens plásticas e as colagens-texto. O esquema criado das Notas permite o fluxo entre a obra plástica e a obra escrita de maneira sistemática e fragmentária, pois cada nota corresponde a um ponto relevante em relação ao trabalho artístico e ao conceito das colagens.
O jogo instaurado aqui tem como objetivo colar aleatoriamente e em fragmentos as notas num mesmo texto-colagem através da ferramenta do Word (ctrlc + ctrlv).
No trabalho das Notas de Tempos Inconciliáveis não há uma narrativa a ser seguida progressivamente como uma sequência lógica de discurso. Cada nota tenta abarcar um conceito apreendido durante as aulas do mestrado, pensadas e refletidas em relação ao meu processo artístico.
A sistematização do fazer artístico na forma fragmentada de notas criou uma escrita ‘aleatória’ e ‘combinatória’ que se tornou o diálogo entre a forma plástica e a forma textual. As ‘Notas de Tempos Inconciliáveis’ existiram a partir de uma disciplina que foi cumprida diariamente com uma certa rigidez formal: pintar uma tela por dia e escrever no diário fragmentos dessa ação durante noventa dias consecutivos.
O sistema de notas ou blocos permitiu o surgimento de formas coesas de passagens sobre o fazer artístico, pois a forma fragmentada e contida [1] em blocos impôs a pesquisa uma ordem pré-estabelecida em que as combinações das notas se tornaram diferenciadas (combinatórias ou aleatórias), e esta situação contribuiu para uma escrita mais sensível de artista que foi capaz de desdobrar conceitos práticos em conceitos teóricos.

1 Trazer o texto como colagem: fragmentos teóricos produzidos a partir da experiência realizada com as colagens plásticas. O texto como colagem não tem urdiduras, não tem costuras. Subverte a própria questão do texto como algo tecido. A colagem existe na superfície[2], faz as idéias conviverem num mesmo emaranhado de espaço-tempo, mas preserva, estrategicamente, distâncias, incongruências, contradições.

2 Podemos pensar como referência para o trabalho, os artistas conceituais do Art&Language, que fizeram do próprio texto teórico um objeto de arte, pois para os artistas do grupo o que definiria ou não um trabalho de arte seria sua intenção artística, um trabalho artístico poderia ser ao mesmo tempo um texto teórico.
O texto que aqui apresento pode ser ele mesmo um objeto de arte neste sentido proposto.

3 A pintura requer tempo: buscas, idas e vindas, tropeços, retornos e pausas. Apagar e aceitar os erros ou fazer surgir os acertos, para novamente destruí-los – eis a tarefa que cabe ao pintor.

4 O desgaste promovido pela colagem de anular o procedimento anterior, transformá-lo, como pintar=queimar[3] na pintura de Anselm Kiefer.[4] Algo que nunca se refaz da mesma forma, como no livro de areia de Jorge Luis Borges, que nunca permite que retornemos à mesma página.

5 A escrita cáustica de Paul Valéry se desmancha à medida que vai se tecendo. No diário de bordo Monsieur Teste de Paul Valéry, podemos ver este tipo de escrita subjetiva e caustica que intervém e anula a lógica anterior, e serve de modelo para este trabalho.

6 A colagem como forma escrita busca referências no romance “Nadja” de André Breton onde a prosa é construída em primeira pessoa e segue fluxo da escrita automática do surrealismo. O tempo não se concilia na linguagem do romance, pois nunca sabemos o tempo exato que os personagens percorrem. O narrador decide seguir um transeunte pela rua. Sabemos que ‘Nadja’ ( o personagem perseguido) existe, mas não sabemos nunca o limite entre ficção e realidade, algo que o narrador não soluciona jamais no transcorrer da história.

7 A pintura requer o tempo da experiência e o tempo da maturidade: exercício, contemplação e labor. E este tempo da pintura parece estar sempre em desacordo com o tempo linear e homogêneo do senso comum. A pintura sempre problematiza o tempo atual, vive de um descompasso produtivo; não se reconcilia com o tempo da vida e faz os relógios caminharem lentos.

8 A pintura parece cada vez mais incapaz de acompanhar o tempo contemporâneo. A imagem da lentidão e da retidão é a imagem do anacrônico e a imagem do século XIX, e se torna a própria imagem do passado, do flanêur pneumático de Baudelaire, que não tem ar para respirar, o ar se tornou rarefeito na modernidade com a invenção da máquina.


9 Re-estabelecer o tempo da apreciação estética e sensível dentro do cotidiano, era isso que o grupo Fluxus pretendia com a sua não arte, re-significar o cotidiano e colocá-lo como evento único ao lado da parte amorfa da rotina.



“O cotidiano somos nós costumeiramente. Neste estágio, consideramos o cotidiano sem verdade própria: o movimento consistirá então em buscar fazê-lo participar das diversas figuras do Verdadeiro, nas grandes transformações históricas, no devenir daquilo que se passa embaixo (mudanças econômicas e técnicas), seja no alto (filosofia, poesia, política).” (BLANCHOT, 2007, pag. 236)

10 O tempo da pintura é do gesto pronto e realizado, registro de algo feito, mas pintar é sempre “editar” pinturas anteriores, operar na história da arte, cindir tempos e experiências, como na edição de imagens de vídeos ou como na re-impressão de uma fotografia ou mesmo de um texto escrito como este das Notas de Tempos Inconciliáveis.

11 A aleatoriedade não pode ser confundida com o acaso. A aleatoriedade existe dentro de um campo fechado de possibilidades, dentro de parâmetros estabelecidos, mesmo que estes parâmetros se tornem imprevisíveis pela seqüência lógica do pensamento.
As minhas colagens nascem do gesto aleatório, mais do que do acaso, pois a cada nova tela que faço se fundem fragmentos encontrados aleatoriamente sobre o espaço de trabalho ou do espaço aleatório dos materiais encontrados numa papelaria.

12 A beleza fortuita do encontro entre a ‘máquina de costura e um guarda chuva’ são encantados pela ilogicidade do evento, ou seja, pelo acaso, isso não acontece nas minhas colagens, pois mesmo não havendo a equação exata do antes e depois, existe o dado espontâneo do gesto de voltar a colar algo o que tinha sido deixado para trás, as minhas pretendem ‘nadar’ entre dois mundos, entre a lógica e a loucura, entre o acaso e a previsão, que é o conceito de aleatoriedade.

13 André Breton como poeta do pensamento da concretude e da loucura , assim como Jean Paul Sartre, e menos como Georges Bataille, o poeta da loucura e do acaso.
Em seu texto “O nadador entre dois mundos”[5] Michel Foucault dá lugar a Breton esquecido e enterrado, o Breton pensador de dois mundos, da extrema realidade e concretude das coisas, e da loucura poética dos surrealistas.

14 As urdiduras são necessárias ao texto. A colagem é o que reúne, sobrepõem, subverte, intervém sempre na superfície. O texto como colagem não poderia deixar de ser ele mesmo superficial (como estratégia) e fragmentado; temporalidade quebrada e sincopada. A cola gruda e desgruda, a colagem se torna temporária, pois as coisas permanecem juntas por que se grudam e depois se descolam, pois a cola seca.

15 A colagem rompe, sobrepõe e apaga, subverte o que está em cima e em baixo, o visível e o oculto. Os campos são cindidos uns pelos outros, a colagem mantêm coisas completamente distintas reunidas umas às outras e essas coisas, apesar de coladas, mantêm suas identidades e autonomias. Convivem entre elas, mas não se amalgamam. A colagem pressupõe a distinção entre os objetos, experiências e palavras.

16 A sistematização do fazer artístico na forma fragmentada de notas criou uma escrita ‘aleatória’ e ‘combinatória’ que se tornou o diálogo entre a forma plástica e a forma textual. As Notas de Tempos Inconciliáveis existiram a partir de uma disciplina que foi cumprida diariamente com uma certa rigidez formal: pintar uma tela por dia e escrever no diário fragmentos dessa ação durante noventa dias consecutivos.

17 A colagem acontece dentro de um campo de possibilidades, o retorno do velho com aspectos do novo. O tempo não é absoluto e não coordena tudo e todos, a própria noção de tempo é permanente, existe num espaço-tempo estabelecido e conhecido. As colagens são sobreposições desses tempos cronológicos e subjetivos.

18 O tempo não é absoluto, não carrega a tudo e a todos, não há mais o tempo inteiro.
A grande mónade[6] absoluta de Leibniz está morta, pois o tempo emana da própria matéria. A física moderna descobriu que toda partícula por mais mónade que seja, possui uma memória elementar e, por conseqüência, um filtro temporal. É assim que físicos contemporâneos têm tendência a pensar que o tempo emana da própria matéria e que não existe uma entidade exterior ou interior do universo que teria por função juntar os diversos tempos numa história universal.

19 Comparo o tempo da pintura com o tempo da música. A colagem só acontece na música, pois as notas são de freqüências diferentes, mesmo que pertençam ao mesmo acorde ou escala, e vibram no mesmo tom e ao mesmo tempo, mas depois se descolam, e passa a existir o silêncio das notas.

20 Dois desdobramentos do tempo são interessantes na pintura: a colagem do passado enquanto memória, e o tempo vivo da experiência, que são as possibilidades múltiplas e infinitas somente no presente.
Ao colar os dois conceitos, temos a idéia de que o tempo sempre retorna, mas não simplesmente como passado renovado, mas sim, com aspectos do passado que se tornam inteiramente novos, pois as possibilidades do novo podem ser infinitas como uma espécie de futuro inconsciente ou não cogniscível.

21 A colagem enquanto memória na música acontece com as escalas e as regras formais que estruturam a música tonal, e que também pertencem à memória do ouvido, que é o sistema do passado. As possibilidades novas do presente surgem das improvisações das notas realizadas pelo compositor na hora da execução da música, e que levam em consideração as escalas pré-existentes da música tonal, as improvisações acontecem dentro de um campo fechado de possibilidades que chamo de campo potencial da aleatoriedade.

22 A música a-tonal pretende não trabalhar com a memória, nem com o passado dos tons, porque quer o surpreendente novo, da escala nova, “o pássaro que não volta para o ninho”. Será que nossos ouvidos conseguem suprir esta falta de eixo, ou falta de norte dos nossos sentidos?
A fisiologia humana sempre retorna e trabalha com a memória, dispositivos de linguagem e armazenamento de informações.

23 Sabemos, com Deleuze, que a duração só pode ser pensada pelo aparecimento da diferença. Em meu trabalho de pintura, quero captar o tempo em camadas, feitas de diferenciações que se desdobram em múltiplos acontecimentos. Existem vários tempos nas colagens que podem ser distinguidos, outros são confundidos e entram num mesmo emaranhado de espaço-tempo.
24 A música passa a existir neste emaranhado que não distingue entre presente e pseudo-presente. A música é meio do caminho entre, o aleatório que existe e acontece dentro de um campo de possibilidades finitas, e o acaso, que é a surpresa e também a possibilidade de abertura para o novo.

25 O primeiro ato na pintura, que se estabelece com as verticais e horizontais que são os primeiros acordes da Invenção a duas vozes de Bach prossegue com a relação da mão direita e mão esquerda do piano que são simultâneas, e que estabelecem um mesmo espaço pictórico das cinco cores primárias através da escala nordestina de Bela Bartók.

26 O primeiro tempo que podemos chamar de primeiro ato ou primeira estrofe sempre é configurado por uma tinta, que é como a escolha de um tom, como na música. (Ex: si b ou fá #) Em seguida, entram em cena os outros tempos do compasso na colagem: a pichação com o color Jet, massa acrílica, a lixa, o reboco, e depois de volta ao início.

27 A partitura se realiza na pintura como escrita executada e não simplesmente uma forma de códigos para se decifrar. A pintura não é partitura, e sim, música. Algo realizado como a freqüência sonora no ar.

28 A pintura como exercício do retorno do real. O real para Lacan é tudo aquilo que não pode ser simbolizado. Como simbolizar o tempo? Vivemos o dilema do instante, do tempo como raposa, que devora tudo o que ainda se possui. O tempo como o grande buraco ruidoso da vida humana. Somos sempre apunhalados pelo tempo que não volta. É oportuna a lembrança da epígrafe do texto do Peter Pál Pelbart citando Maurice Blanchot: “Morrer é, absolutamente falando, a iminência incessante pela qual, no entanto, a vida dura desejando.” (PELBART, pag. 10, 1998)

29 A superação da contemplação sobre a ação segundo Plotino. O artista não consegue mais contemplar, age e então volta a contemplar: contemplação /o fazer/ a volta da contemplação.
Passagem de “Confissão Criadora” de Paul Klée:



“Um certo fogo que surge, que se acende, que avança através das mãos para atingir a tela, que incendeia a tela, que salta em faíscas, fechando o círculo ao retornar para seu lugar de origem: alcançando os olhos e continuamente seu avanço [de volta ao centro do movimento, da vontade, da idéia.]”



30 A respiração pausada e lenta, e a continuidade dos sons, dos pensamentos, das palavras ditas e não ditas, da memória aterrorizante e sempre presente. Colagem-descolagem, sobreposição, justaposição, composição, decomposição.

31 São as imagens, objetos e experiências do mundo - incluindo aquelas apreendidas pelos aparatos tecnológicos - que busco traduzir na pintura. Não simplesmente mostrar, exibir, mas traduzir naturezas e temporalidades inconciliáveis em meios pictóricos.

32 Fotografias de muros, de rebocos, cartazes colados e descolados. Tento refazer essa experiência, que vivo no dia a dia, na chave da atenção dispersa, algo tão próprio à modernidade. Busco a repetição diferencial. Aprisionamento do mundo pela imagem, no anteparo da tela, assim como nas serigrafias de Andy Warhol que nunca se repetem e sempre retornam com diferenças mínimas.

33 Em minha pintura, os rebocos entram como ready-made, porque são deslocados e traduzidos dentro do plano pictórico. É bem verdade que a pintura moderna, desde seu início, é ready-made, pois desde o final do século XIX, o pintor passa a comprar sua tinta já industrializada e perde, assim, parte de seu ofício, que incluía a manufatura das cores. A busca da minha pintura é a tradução dos índices pictóricos dos muros e dos cartazes de ruas colados e decalcados em signos autônomos da pintura. Seria interessante pensar o coeficiente ready-made de toda a pintura – sobretudo na segunda metade do século XX. Isso significa pensar seus ardis, suas estratégias, sua inteligência específica, que não opõe visível e inteligível.

34 A tradução não é oposta à transparência. As pinceladas e aspectos formais estão sempre presentes na pintura, mas quero o diálogo com as colagens superficiais vindas da cultura de massa, da mídia, e os aspectos internos que perpassam toda existência humana que são próprias do tempo lento da pintura.

35 A superficialidade da Pop art, retirar tudo e todos das profundezas da subjetividade e trazer para a superfície como simulacro. Este processo anestésico é uma estratégia da obra de Andy Warhol.

36 As imagens traduzem outras imagens; a imagem é sempre auto-referente porque se refere a uma imagem ou a ela mesma. Os signos da cultura de massa são referencias e sem potencialidade, pois há a exacerbação dos signos na vida cotidiana. Até as referências históricas são banalizadas e diluídas na vida. Como conferir resistência à pintura?

37 O grande legado das colagens cubistas foi a compreensão da arbitrariedade do signo que segue presente até hoje nas artes. A arbitrariedade dos objetos “reais” colados na tela, como nas obras de Jasper Johns, Robert Rauschenberg e tantos outros.
A combine painting de Robert Rauschenberg é a operação das colagens de trazer objetos ordinários para a pintura e para o espaço, e isto foi, acima de tudo, um ato político e conceitual na busca de uma verdade que não estava no caráter puramente estético da pintura da escola de Nova York.

38 A colagem foi e é um ato de extrema subversão que destrói o antigo, retoma o velho e o inútil e se embebeda da corrente surrealista.
A tradição surrealista em todas as artes é unificada pela idéia de destruição dos significados convencionais, e da criação de um novo significado ou contra-significado pela justaposição radical (o princípio da colagem). A beleza, segundo Lautréamont, é “ o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação.” (SONTAG, 1997, pag.125)

39 A pintura na modernidade deixa de ser transparente e passa a ser opaca. Não diz mais a verdade do mundo exterior. A opacidade é também a dos sentimentos e da imaginação na pintura contemporânea. A experiência da pintura vive de uma certa nostalgia. Como tão bem observou Yves-Alain Bois, a pintura seria, de fato, uma tarefa
do luto na modernidade. A pintura abstrata nasce com o prognóstico de seu fim, como um último lance, uma última partida, a última verdade a ser desvelada. O fim apocalítico e redentor da pintura, que busca o fim em si mesmo e a busca pela sua essência opaca.

40 Nas minhas colagens sub-existe a idéia de sincronicidade de tempos. Justaposição de tempos e idéias ou signos. O jornal sobreposto à tinta seria a idéia do efêmero (passado). O signo vermelho, e outras inscrições, são de um tempo anacrônico, eterno e indecifrável. (futuro). O preto e o branco, a pintura e o tempo atual. (presente).

41 Proponho-me pintar 90 telas em 90 dias. Pequenas telas quadradas de 30 x 30 cm. Experiência ininterrupta da pintura, como algo cotidiano, independente da vontade ou qualquer inspiração. Pintura como exercício de temporalidades.

42 Inicío a leitura de “Brás Cubas”, de Machado de Assis, cujo narrador inicia o livro pelo relato de sua morte; inicio “a pintura por 90 dias”, que parte da morte vivida desde o primeiro dia de pintura, dia 31 de julho. O relato sempre começa pelo fim. A pintura é uma consciência da finitude, um relato que parte do fim e que antecede sua morte tantas vezes anunciada. Seria o pintor um narrador que relata, renovadamente, a própria morte da pintura? Será o lugar de chegada da pintura moderna ainda o túmulo, o cubo vazio e branco dos museus e galerias?

43 Nas traduções existe a perda, a incompletude. As pinturas tendem a ser traduzidas pelas palavras, algo assim se perde no caminho, algo que só a experiência sensível consegue dar conta, como na poética de Robert Ryman, entre tantos outros. Existe a impossibilidade da tradução na pintura. A melancolia é própria da pintura moderna, pois ela parte da consciência de seu fim. Podemos pensar o pintor como um tradutor? Com Walter Benjamin e Suzana Kampf Lages[7], sabemos que o tradutor vive sob o signo da melancolia. Se a tarefa do tradutor é reescrever – ou transcriar, como queria Haroldo de Campos - os conteúdos lingüísticos de uma obra literária em outra língua, a tarefa do pintor é traduzir nossa experiência de mundo para o universo dos signos plásticos.



44 Por outro lado, ao assumir a tarefa de pensar e escrever sobre a arte e sobre sua própria produção, o artista assume a tradução dos signos plásticos para os signos verbais. Acontece que este tradução nunca se efetiva, nunca se dá de maneira integral e redentora. Na tradução, há sempre restos, resíduos, intransparências, materialidades e tempos inconciliáveis.

45 O sentido da obra não se entrega facilmente, encobre-se de verdade ou impurezas.

46 A escrita na forma de fragmentos tenta conter o todo em partes, a sistematização do pensamento em notas ou blocos permite que esmiucemos ao máximo cada parte fragmentada, que segundo a teoria de Schlegel[8] seria a única maneira de tentar abarcar sistematicamente o pensamento que é, no todo, inapreensível ou inabarcável.

“Assim como no âmbito teórico, os românticos chegam à conclusão de que só é possível se atingir uma lucidez pontual, no plano da forma da exposição passa-se o mesmo. “A minha filosofia”, escreveu Friedrich Schlegel em 1797, “é um sistema de fragmentos em uma progressão de projetos (...) Eu sou um sistemático fragmentário. Um fragmento deve ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo ao redor e perfeito em si mesmo como um ouriço.” (SELIGMANN, pág. 41-42)


Assim, a idéia de notas ou blocos, que aparentemente poderiam ser entendidas como incapacidade de progressão ou continuidade tornam-se uma tomada consciente do trabalho como única forma possível de abarcar os conceitos teóricos de maneira totalizadora.

47 Talvez a pintura, em seu gesto anacrônico seja a única expressão artística contemporânea, pois é a única expressão extemporânea, pois na concepção de Friedrich Nietzsche, a única possibilidade de ser contemporâneo é estar de fora da rede dos acontecimentos. A experiência da distância, do seu colocar fora do tempo se torna a condição de perceber seu próprio tempo atual: “O contemporâneo é intempestivo”.



48 A pintura como “O retorno do real”[9], que para Lacan o real é tudo aquilo que não pode ser simbolizado ou traduzível e nunca se torna em si assimilável, por isso, precisamos do simulacro ou do anteparo que é a forma possível de tradução do real, sendo a arte uma das formas possíveis de anteparo ou simulacro desse real.
Para contrapor essa idéia do real nunca assimilável ou cogniscível temos o existencialismo ou ceticismo de Jean Paul Sartre, que em seu livro “A Náusea” de 1938 relata o dia em que seu personagem Antoine Roquentin, um historiador que pesquisa a vida e obra do Marquês de Rollebon que foi acometido por um mal inexplicável e passou a observar as coisas do mundo em sua superfície naquilo que elas são somente, a percepção pura e inquestionável do real. Alguma coisa mudou no mundo de Antoine Roquentin e no modo como ele enxergava o mundo.




























[1] Ver teoria do fragmento de Schlegel in SELIGMANN,Márcio Silva “Ler o livro do mundo”. pág. 41-42.

[2] Superfície é um conceito importante da filosofia pós-estruturalista que diz que os acontecimentos só acontecem na esfera da superfície, na camada mais externa, pois não existe algo que esteja por trás e tenha a capacidade de revelar o invisível ou o indizível como na metafísica cristã. As coisas só se explicam em sua superfície, pois os signos só se traduzem por meio de outros signos. A superfície é o único lugar onde as coisas se dão.

[3] Danziger, Leila. Pintar=queimar. Revista Gávea n.12, 1994.

[4] Anselm Kiefer, pintar=queimar, a re-significação do emblema da pintura e da morte da alta cultura germânica após a guerra, e dos mitos construídos na Alemanha nazista. Possui um extraordinário entendimento dos materiais não-usuais da pintura como: a palha, a areia, o chumbo, as cinzas e a madeira. O pintor tem como tema principal em sua poética, o Romantismo alemão, o grande tema da Terra, do solo e da floresta.
[5] Michel Foucault (Entrevista com C.Bonnefoy). Arts e loisirs, no. 54, outubro de 1966, os. 8-9.

[6] “Tal é a intuição maior que guia a obra e Leibniz, em particular a Monodologia .Deus é a mónade absoluta desde que conserve a totalidade das informações que constituem o mundo numa completa reunião. E se retenção divina deve ser completa, é porque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estão presentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossos espíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro.” (LYOTARD, pág. 67, 1990)
[7] LAGES, Suzana Kampf. Walter Benjamin: tradução e melancolia, 2002.

[8] Friedrich Schlegel, filósofo alemão do séc XVIII.
[9] Hal Foster. O retorno do real. FOSTER, Hal. O retorno do real. In:concinnitas 8, Revista do Instituto de Artes da UERJ, julho 2005, pp.163-186.

2.05.2009

colagem-vídeo